O termo “cancelamento” se tornou comum e isso tem provocado várias reflexões no próprio meio que o iniciou: o tribunal da internet. O que quer dizer ser “cancelado”? E como isso pode ter efeitos negativos ou positivos na nossa sociedade? Será que o “cancelamento” não reduz os debates provocando uma reação extremista que não aceita o direito de defesa?
Quando alguém, principalmente uma pessoa pública, se posiciona seja através das redes sociais ou em outros meios de comunicação e emite opiniões controversas ou que de fato firam leis (o que normalmente não é o que ocorre), a pessoa é “cancelada”, portanto excluída daquele contexto. Logo, perde seguidores, trabalhos e patrocínios. Literalmente essas três coisas podem não ocorrer, mas no mínimo o cancelado sofrerá 15 minutos de linchamento virtual até que venha o próximo “cancelamento”.
“Cancelar” alguém é no mínimo uma postura confortável, afinal, se algo nos incomoda é mais fácil rechaçarmos do que de fato nos abrirmos para o diálogo ou o debate. Portanto, essa postura também vai contra o direito da liberdade de expressão -aqui há uma linha tênue entre discurso de ódio e liberdade de expressão- podendo resvalar em censura, sendo totalmente o oposto do que Voltaire defendeu no iluminismo, momento crucial para pensar a democracia no mundo ocidental, a partir da sua máxima : “ Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-lo.”
Na contemporaneidade, momento em que todos nos tornamos emissores, não havendo mais distinção de quem é legitimado para fazê-lo, uma vez que as redes sociais permitiu que as opiniões fossem dadas por qualquer um que tenha acesso a internet, é surpreendente que os diálogos tenham se voltando para a proibição e não para o debate já que agora temos a possibilidade de fazê-lo de uma maneira bem mais ampla e menos simplista.
O “cancelamento” em si gera discussões sobre se a pessoa deve ou não ser “cancelada”, mas não permite opiniões mais amplas e anti polarização, é sempre uma escolha entre lados. Para os que apoiam a “cultura do cancelamento” é importante que isso ocorra para que pessoas que compactua com certos tipos de pensamento não emitam essas mesmas opiniões, mas até que ponto de fato isso é efetivo? Até que ponto de fato o outro irá se desconstruir e não apenas se calar?
Nesse contexto também se esquece que uma fala ou uma postagem não define a pessoa e sua gama de opiniões, nem um único discurso tem o poder de fazê-lo. E ainda que exista um arsenal de discursos polêmicos proferidos por alguém ou atitudes consideradas insensatas é necessário que se fale sobre isso sem precisa decretar o “cancelamento”, porque é perigoso apagar alguém ou uma história.
O “cancelamento” abre precedente para o perigo de uma história única, pensando em conjunto com a intelectual Chimamanda Adichie, porque ainda que se trate das palavras daqueles que são considerados opressores, esses precisam ouvir o porquê disso sem que se decrete o linchamento virtual. Afinal até nos tribunais ou réus tem o direito de defesa. Será que de fato só a opinião de quem “cancela” importa? De que culturas estamos falando e de onde estamos falando e quem estamos “cancelando”?
São mais perguntas do que respostas e é exatamente por isso que o “cancelamento” -ato de punição imediata criado no tribunal da internet- deve ser repensado. Não existem verdades absolutas, é necessário voltar aos filósofos para entender que ninguém é dono da verdade, ideia oposta à do “cancelamento” o qual pretende ser a última instância da moral na sociedade contemporânea.
Foto de capa: montagem Jacqueline Gama